Dois ou três jogadores para cada lado. Meta feita com chinelo, pedra ou caixote. Dois gols ou 10 minutos. Jogando bola na rua que muita gente perdeu pela primeira vez a tampa do dedão do pé. Também foi na pelada que uma geração de brasileiros teve sua personalidade forjada. No conflito entre times, tendo que esperar a vez quando está do lado de fora e se relacionando com colegas que apareciam sabe-se lá de onde, muita gente aprendeu a lidar com fracassos, frustrações e, principalmente, com o diferente.
A falta disso, ou de situações semelhantes, pode resultar em pessoas criadas como pequenos reis, que crescem totalmente voltadas para o próprio umbigo e que desenvolvem uma dificuldade enorme para se relacionar e sentir alguma empatia pelo outro. É isso que acredita o psicanalista Christian Dunker, que recentemente lançou pela Boitempo o livro “Mal-estar, Sofrimento e Sintoma”, no qual se debruça sobre os impactos da cultura de condomínios e isolamento por meio de muros – não somente os físicos – que se tornou uma tendência ao menos para a elite do país desde a década de 70.
“Naquele momento, após o primeiro golpe e quando as cidades ainda estavam sendo ocupadas, a maior preocupação era com as leis, com a ordem, então, a partir disso, começaram a surgir os condomínios, oferecendo o que o próprio estado deveria oferecer, mas não o faz, como segurança”, explica numa conversa na pousada em que está em Paraty, onde participa da Flip.
No entanto, décadas depois do início desse movimento, o que temos são gerações de pessoas que nasceram e cresceram em bolhas, convivendo apenas com seus semelhantes – economicamente, culturalmente e, quase sempre, fisicamente – e enxergando somente temores e ameaças no que há além aqueles muros. “Quem vive apenas nesse ambiente não sabe quem é o outro e acaba desenvolvendo relações baseadas fundamentalmente na inveja, na maneira que será visto”, diz o psicanalista. “O ideal seria que, ao encontrar alguém diferente, pudesse haver um diálogo real, que o outro pudesse me fazer uma pessoa diferente, não fosse apenas um exercício de narcisismo, da afirmação do eu”.
Dunker ainda explica que essa segregação social e a necessidade de se afirmar perante o colega de dentro do muro acaba resultando muitas vezes em gente com um gosto estético questionável (um exemplo: carros que cada vez mais se assemelham a tanques de guerra), baseado essencialmente na ostentação. “Alguns acham que a beleza está intrínseca nos próprios objetos”, pontua. Para o psicanalista, uma espécie de caricatura desse perfil, com suas características principais exacerbadas, acaba sendo encontrada no funk ostentação – seria como se Mc Guimê fosse “uma paródia involuntária do rico de condomínio”.
Mas para o psicanalista esses muros poderão começar a cair dentro de pouco tempo. “Os filhos dessa geração que cresceu em condomínio deverão ver isso como um anti-modelo. Serão pessoas que vão querer passear, viajar, ir à Paulista andar de bicicleta…”, acredita. Quem sabe não voltam a jogar bola na rua também.
Fonte: Rodrigo Casarin em uol.com.br
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